TEMPORADA FORA SI



O novo & o mar e a mata

I
Entre o mar e a mata
(alguma) pouca diferença.
No mar as abelhas se chamam águas-vivas;
ambas, vivas, queimam e/ou encantam.
Cantam, teimam, enfeitam, mel, fel.
Entre o mar e a mata
(e a vida) pouca diferença.

II
Entre a mata e o mar
até o som é análogo: ana-lógico -
                                                       se fechamos os olhos
habitamos facilmente. Habitamo-nos                   (concha)

III
As estrelas na mata se encontram em cima,
e tropeçamos olhando pra elas;
                                                  as estrelas no mar se encontram abaixo,
e tropeçamos olhando pras estrelas que nos fazem tropeçar na mata.
Evoluímos, graças hàs estrelas lá em cima, para o estado do tropeço.
No mar podemos recolher estátuas que nos lembre sempre desse ensinamento.

IV
Não sinto o súbito do medo que sinto na mata no átimo
em outro lugar que não no mar.
É um medo que só o mar ensina, esse medo que aprendemos na mata.

V
É que a mata, tal qual o mar, é o reino do desconhecido,
governado pelo poder do mistério (alimentado pela imaginação).
É que o mar, tal qual a mata, é a alçada da revelação,
do vento, do pó volátil que se escorre em ventania (em ondas, de água/folha).

VI
No jogo do espelho matérico, a mata se encontra na beira do mar,
arrancada pelo acidente,
e chamam-na alga.
Na beira da folha, ao amanhecer, se o mar na mata,
oscilante, em sal,
chamam-no orvalho.

VII
Quando o corpo esquecemos no mar
ele se-dança como a folha no ar,
quando esquecida pelo galho.

VIII
O verbo do mato é o matar,
O contrário do mar o amar,
Comtudo não é preciso gramática,
ver sÓ
nos espelhos quiméricos da criação
do fora-da-lei rigoroso:
nele, encontramos o aquilo
que queremos, o signo
que auscultamos
astrologicamente
no céu da boca –
o toca do lobo do homem – a que uiva, no ranger dos sorrisos e lamentos.

IX
Espumas daninhas nas beiras dos estertores.
vicejando na sua teimosia
dançam pela areia o réquiem
do vento, do tempo, do inescapável movimento
Ato do mato, ar do mar.

X
Atar os fatos, nos seus lapsos, é começar
a enxergar?
Chegar em tatos, anti-lapsos
através de tintas, teclas, rabiscos, ciscos
é ciscar?
Arrancar do olho o grão e-
levado do chão,
Da terra do mar & Da umidade da terra da mata, é
    tocar o átomo – o anti-átimo?


Habito o espiritual prazer:
ocupar este corpo.

Ocultar esse ser alado
que não se angustia em voar
senão com o tempo – o tempo – o tempo
é meu doce orgulho:
o prêmio de estar. e, livro

Sobre o não tocarei

Entoco
na sacra ooteca
as mais valiosas
essências ocas

lambo-as
com a calma da coruja
com o zelo da criança
quebro-as

pouco ou nada
encontro além do encontro

sou só um sou
e buscando nem-isso, no depois
                 ou


flor dágua

das flores de luz
a que se desabrocha mais complexa
é a água;
                É vaga –
traz no dorso da língua em espuma
o maior dos menores mistérios:
               o n A d a


Sentado na praia

De que paciência sussurram – unísssono – todos esses grãos de areia?
Que impaciência me fez construir castelos para as ondas levarem?
Será que eu posso simplesmente vivenciar o ar sem este ímpeto vicioso – círculo – de registrar verbo na palavra – meter estaca?
Por que essa não-aceitação do efêmero?
Por que essa necessidade estúpida de enfrentar a morte?
De onde essa carência patética de comunicar?
Sentem o mesmo essa manada de passarinhos que apresenta sua incrível coreografia para mim - solitário, aqui na arquibancada de areia?
Será, mesmo, que àpenas voam?
Será que não almejam a imortalidade com esses saltos mortais?
E essa concha, na concha de minha mão – fez-se tão perfeita para restar silenciosa ao acaso de uma mão – que irá admirá-la (ou destruí-la) em concha?
Que sons em si conduz de sua experiência?
É por expressão que veste de estilo a retórica dos segredos ao pé do ouvido?
É pelo nostálgico eco de Ariadne que se embrenha, líquida voz de sereia, em meu labirinto?
De quantas ressonâncias o céu da minha boca esquece


serenos?

o sapo advinha a chuva
quando em canto
a pedra prevê-se areia
quanto em silêncio
o homem sabe que é morte
em tempo

se – seres – somos seremos
é causa que
quase
quê?


Sim fonia do sonho

A lua ninou-me a rede;
entre as frestas do telhado
vaga mente, meneei sua maré de luz e oposto.

Fui mergulhado pelo sono dos ventos,
pelo som das folhas me afoguei...

gias então infestaram seu antigo lar – aquele que Eu habitava e                                                                                                                  
                                                                                  colonizara
formigas, grilos, cigarras – todos me dedicavam gritos de guerra
- assim formavam a sinfonia onírica – que sugeria à minha imaginação
vaga-lumes
vaga lumes –
- vaga lumes
vagas
lumes
-
O Sol despertou-me;
entre as frestas do telhado
flechou-me a ordem de + um dia:
era preciso levantar
desdobrar as vértebras, as pálpebras
as ervas daninhas
Acordar.


Assovio

Se você quiser, vento
Me encontrar...
Sobe a Monte Sião,
Desce a Saudade ruma à praia.
De chapéu de palha,
vermelho que nem puro sangue,
corto com o terçado ramagens obtusas,
cipós emaranhados, raízes selvagens.
Às vezes paro para beber água
e desaguar
- entre as gotas do suor relatório -
versos de esperança pela tua chegada.

Ainda assim agradeço pela ausência
Pois apreendo pois, no maior e mais exposto órgão,
os lampejos onde atingimos o estado do instinto,
onde somos apenas movimento jurado pela necessidade:
pele trocando ar:
ar trocando de pele.

Dessa escola matinal é
que o punho escreve esta carta
como um “dever de acaso”, e
mais rápido que qualquer rede virtual,
tu me respondes:
molhado, viril, materno, refrescante...

nuvem e chuva trazes em teu dorso
e ao colo da rede então recolho-me  – escorço de sombra fresca;
que se na escola do mato a pedagogia
era ativa,
na tua educação justa
- aprendi imitando a folha –
balanço apenas
feito a pena, estio;
e embriagado de cansaço,
com a face já seca pela tua língua,
contemplo calado teus gestos invisíveis
nos uivos: hieróglifos dos teus ruídos –
insensível música que improvisas por nada.

Que se tudo que reclamava pesar agora dança
Evoé, vento, evoé
porque atendes, sempre ar, aos sinais
asas, fumaças, aços
de nossas lanças, ânsias, lapsos
de nossas canções.


V hai-kais-complexos

I
cessa de súbito som da cigarra
sem cigarro
insônia em chamas

II
água enche balde de água
som enche casa de eco
dormem pés sujos dormem

III
palmeiras-sereias se-esquivam
ladrão de beijo-sorrateiro
em cantos de ventos de vultos de uivos: o vento, beijoqueiro

IV
os pássaros diurnos convidam
os noturnos alertam
mera asa surda, eu vôo

V
que eu fui levantar
cabeça veio embora p/ baixo:
vertigem; causa surra de caba


escorço

tua ausência não te atrapalha quando outrora foste futuro


Tenho

Recebodougrafo passostraços
Presente, pressente, Presente
o próximo sem faltar o fôlego
graças
Dançar sem chorar as estrelas

tecer taça, sorver olhar, liturgicamente intuição
tão
nem-meu
fruto-sentimento
se-mente
que se toca a fronte, se queira tocar a fronte
e dançar sem chorar
estrela


Matar e morrer na matamorro

Mata do outro lado respira, respira
olhos do som cigarra, cigarro
me esfaquearam s/ me ver, ter
sou sim só sangue, e só
Morro do outro lado respira, respira

Apenas meras
      geografias de uma existência
s/ cartografias;
mangue de brotos
trocos de soluços
pulsos de pulsões
do outro
lado
de dentro
fora de si


                                                 Minha estrada
                                                             é       a     estrela                    
                                                                    ela       pele
                                      dada
                                                                          foi
pêlo                                               dado                        do                                                                                                                                                                                              
                                                                                          estrangeiro



S’hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...
Escuta

Escuta

É o mundo em movimento.

Não é você.

Através de você.



S’escuta               S’escuta
É o mundo em movimento.

Reflexões
Não deito os olhos
deito-os abertos na janela, fechada
Olho os reflexos das coisas.
Assim, olhando sua miragem
sinto enfim alcançá-las
como deve ser: por imagens.
Abrindo as minhas janelas
percebo o mundo nos reflexos
desta janela fechada.
"Só a luz", uma voz sussurra -
detrás das janelas minhas portas -
"Só a luz a esta casa é bem-vinda;
esta casa incendiária te alumia".
Esta voz antes rude suave fica;
e como o sábio ou diabo, repete enfim
enfim a instrutiva:
"Na era da imaginação,
onde a fumaça engole o fogo,
tudo é o que é: um reflexo".
Um reflexo.


Redes

Os intervalos são os momentos ocupados pela rede.

Na rede material a gente se esquece, balança;
Buscamos nos ruídos inauditos as revelações, nos perdemos:
excitados nas imaginações eróticas, dançados entre os nós nos punhos -
nas divagações do absurdo, nas indagações sem-espelhos
!Na poética doa devaneios !presos! voamos sob nossas medulas...

Na virtual não há indivíduo também, só informações
Poluições de imagens, estradas sem rumo, mar
Nos afoga, nos afaga, nos encanta, nos atrasa,
É social, e podemos responder,
São várias perguntas, milhões de assuntos
Transeunte, nós-outros,

Os intervalos são esses momentos em que nos enredamos


O mal-estar no campo

Numa cidade chamada Santa Bárbara no Pará
vive um casal que sobrevive da agricultura
e de um certo carinho mútuo
Carinho que amorna a água, mas que deve ser dosado
para não pelar – despelar em veneno
Ele equilibra a sua incidência de calor nessa água
passando o dia a controlar a acidez do solo e a economia das vendas
Ela em alquimia de temperos e gestos
se entretém com as verduras, os animais e as crianças

Um dia chegará, sob a lua de uma noite
em que Ele viajará
que Ela, sobre a lua refletida num igarapé
será possuída, de forma consentida, pelo Estranho

A partir tudo irá mudar,
e ele e ela viverão assim
com esse incômodo
até que a morte os separe.


Da emoção, De acordar. Do lobo, Do homem, Do olhar

Sonhei de novo com esse lobo que me persegue e que não quero matar. O que sinto por ele é o mesmo que sinto por mim, e sinto que ele ferozmente sente o mesmo do outro lado. Ele não quer me perseguir mas tem que me matar; ele não quer se perseguir mas tem que se matar.
Face e contra-face do espelho onírico, na vigília caçar-te-ei para exterminá-lo, enquanto tu sentirás saudades de mim no mundo dos sonhos.
Saiba que te olho, fera, pelo binóculo da imaginação. Não ouses deixar uma lágrima na neve, assim como não verterei uma gota de sangue aqui na terra.
Nem dilúvio ou terremoto. Será no olho do furacão que nos enfrentaremos-encontraremos, e no silêncio – 5 olhos – construiremos o olhar que seguirá rumo ao deserto, espalhando os grãos de nossos passos acima do chão,e fora da ampulheta.
Lá poderemos nos devorar, comungar, verter lágrimas de sangue, dançar a morte. Não será vigília ou sonho, lobo ou homem, delírio ou desilusão. Na fronteira seremos apenas o olhar vazio. O Olhar: Verbo puro da emoção. Que é Palavra


O Gênio e o Homem

O gênio é este grão de pólen impalpável que a Natureza varre de sua casa vez ou outra, como que para cumprir uma promessa pessoal de doar uma migalha de verdade aos seres, naturalmente vadios e pedintes.
Esse grão não transita no espaço; só os que habitam com mais propriedade o tempo é que podem farejá-lo. É uma pedra de luz, que trisca a consciência; uma imagem bruta, que pulsa o sangue.
Muitos humanos participam e trocam ares com esse vento passageiro. São os de poderosa intuição – trabalhada e/ou nata. São os receptores, e os que ativam. Enfim, os seres que existem, os entes que são. Os seres que existem nos entes que são.
É uma dádiva inefável, dizem, o real manjar dos deuses.
Dentre estes participantes da liturgia silenciosa, há os que guardam esta pedra em imagem, na consciência que afogam no sangue. Em luz esculpem a essência; e em matéria lapidam uma única forma de existência.
Chamam estes de gênios, mas não são gênios. Gênio é outra coisa.
Este é o Homem, não “qualquer homem”, mas o Homem – do que ele é capaz.


tábua rasa Praia Funda

Quanto mais adentro o Grande Rio, mais encontro a Rica Família. Aqui eles não precisam de nada que aqui não tem – e é essa, sem dúvida, a virtude da riqueza.
Finalmente compreendo o que significa “interior”, é que aqui ninguém precisa de “capital”. Aqui no interior todo mundo vive dentro do exterior, e são, dentro, todo o seu habitat.
Aqui não tem sentido roubar ou ostentar, aqui todos são ricos, tudo é doado pela mãe. Aqui se colhe, se planta, se morre, se nasce. É tudo natural.
Lógico. Não há progresso que não seja ecológico. Não há encontro que não seja fortuito. Todo intuito nasce pela vida. Pela ida todos vagam, sem pressa e sem atraso.
Aqui toda individualidade caminha só, no passo do Mundo. Não é marcha é dança, e ainda hino.
O tempo é o sideral. Não há mapas, só estrelas. Não há garimpeiros, só alquimistas. O espaço é o aqui. Tudo é ouro, e o sol e a lua faz brilhar.
Aqui todos tem o dom da duplicação do espírito: são o agente e o espectador, concomitantemente. Comungam do eterno também, quando nem-são.
Quanto mais a dentro o Grande Rio, mais te encontro, Invisível Ilha, pro fundo. Aqui, cosmo. Lár.
Nem República ou Caverna, Ar Livre. Leio nas nuvens.

Scorpio

Estou atento e banho na praia, é noite, mas ainda sons de humanos na praia, tudo escuro, mas sei que ali ainda estão, é o som, mesmo no escuro sabemos, os humanos fazem sons que sempre reconhecemos. Debaixo d’água algo que não escuto não vejo sinto, meus pés se arrastam entre lamas e pedras, mais algo, mas algo que não sei, que não reconheço esse algo que sinto, que meus pés arrastam, que não posso ouvir, que meus olhos não podem enxergar, mesmo no escuro. Também não posso descrever, não sei descrever o tato, o tato se escreve? É o mistério – somos tocados.
Estou e tento tomar banho. Praia. Em casa falta d’água, na praia água fria, água limpa, água única, que esconde mistérios. Eu e outros agora habitamos, sobre e submersos, eu’s e alguns sob e sobre a praia, humanos e outros. Sons. Os humanos em êxtase algazarram palavras com as mãos espalmadas sobre as cabeças sob os livros, tentam um contato com deus, um contato sem tato, um contato pela palavra, pelo som, e pela lógica do entendimento que chamam fé. Um contrato: dogmas e dízimos. E vários não se escutam, fazem muito som, não se escutam, fazem muito som; esses lares são de areia? Igrejas edificam.
É escuro, ouço as luzes que jogam para o alto; o vento as rebate às vezes, amplificando o barroco e as palmeiras, as sombras de dedos de palhas sobre as areias, sob a abóbada todos nós, terra e mar, e areia, e as palavras ao vento, e os grãos no escuro, e os tesouros submersos. O que é isso que toco ou me toca? O que é isso que na planta, no pé, me espanta, entorta o passo? Me agaixo? Que gesto o ocaso me presenteia? E se é bicho, e se é veneno, e se é aquilo que não saberei, e se é o que não tenho proteção? O que há submerso, sob meus pés? Sobre coragens tenta me ensinar, sobre medos quer me instruir? O que há sub, sob, sobre meus gestos de mente que não esses mistérios que a mente é tocada? E, humanos, nós pra que tantos sons, palavras, contratos, contatos? Acordas pra que tantos nós? Foram estes que tocaram nossas águas em nossas casas para que viéssemos ao grande rio sermos tocados também? Água invisível é o tempo.


Pela Noite Eterna

Das lágrimas frias
gasosas quase líquidas
da Eterna Rainha
eu Fui, em destemida busca,
vasculhar nos invisíveis grãos
os resquícios das memórias de mim
que displicentemente não conheci.

Mergulhei nos sonhos esquecidos
de toda a Humanidade
Encontrei, perdidas, todas as
esperanças ideais, todas as
lembranças do inexistente
passaram por mim como vultos..
E atravessando a Noite Sombria
- onde tudo é velho e familiar
mas tudo virgem à visão -
Escalei pro fundo o espelho aquoso
do seu reflexo prateado,
oscilante em gota abismal (Prelúdio Lúdico de Queda ).

E nesse átimo,
onde já era dia mas ainda Lua,
lambi-me de dentro: fui um átomo de orvalho.
Lá me encontrei e soube de tudo e fui e sou a Grande Obra -
e não temerei a morte daqui para frente, pois também a sou.
Sou essa cápsula frágil, esse vento que me oscila,
Sou essa terra fértil que me espera, esse fogo invisível .
Esse átomo, este átimo, ouro, sol, éter; sou o filho da lua -
e me entreguei em comunhão com o dia:
Fui luz, mesmo pródigo da escuridão.

& Após Êxtase
decantei-me em canto
& em cores dedilhei alvorada
com minha voz de luz e ar re voada
Virei o mar, e em grandes ondas retornei à praia
nu e esquecido, renascida nau...

& daquela noite eterna, acordei para nunca
para sempre.


Mateus Moura
Ilha do Cotijuba/2012



incêndio




PALAVRA DE DENOTAN








POEMAS PROVERBIAIS
 
1.
Ó tu, barqueiro desgraçado,
pedaço qualquer de coisa maldita
Não penses ingenuamente que irás conduzir-me ao outro lado assim tão fácil
Mande avisar Perséfone que jamais olhei para lugar qualquer que não o alto
Que minha Lira jamais soou para alguém que não ela própria
Sou o abismo da solidão
O altar da liberdade
O vôo e o rastejo do dragão lunar
O coração que bate eterno
A montanha sagrada.
Afasta-te, sombra sob capuz,
aqui tua foice cega será
Mande avisar Belzebu
que o fluxo não cessará jamais
que a corrente desta correnteza
nunca poderá ser partida
que a poeira das estrelas não é nada mais que uma utopia dos deuses.
Sim, desista, afasta de mim o som destas asas, Azrail,
faça tu o teu retorno original
cansado nunca estarei
a vigília será meu travesseiro
de mim ninguém nunca me tirará
Eu nasci pra dentro do mundo
e o mundo em mim crescerá.
Sou o Cosmo, a Natureza e a Vida,
Sou ulterior à Morte, ulterior à própria Esperança,
Sou Denotan, o profeta da essência
minha alçada é a das revelações,
o meu mundo é o das palavras
as palavras não valem nada,
No princípio, no principio, eu vos digo
no principio, era a mentira
e o fim não será diferente
entre o vazio e o nada o jogo do tudo
no lance, jamais abolição do acaso
Na luz a ausência da treva, na treva a ausência da luz
Tudo tem o seu preço, toda beleza o seu quinhão de ridículo
E é preciso pagar pra vivenciar, ver para contemplar 
A moeda é a coragem
o prazer e a dor se confundem na travessia
Atravessar, porém, é preciso,
temer não é possível.
Deve-se amar a fuga no encontro da estrada,
perder-se na embriaguez lúcida do passo inconseqüente
no imensurável templo do sabor do vento.
Esqueçamos pois, o incômodo dos calos,
falos eretos, adentremos
Que a sina, o sino anunciam:
é hora da abolição do tempo
da criação, do nascimento.

2.
Se a Lira compõe o realejo determinista
A Sorte – em tom de Acaso Maior – rearranja a canção
- sussurrada em forma de vento por todos os lugares.
Ao Ser, virtuose natural do instrumento da Vontade,
é destinado um limite: a Liberdade de improvisar.
Mais valente que os deuses são os homens, que acreditam
A fé no mistério da fé é o maior dos mistérios
A vida não morre, ela é morte todo o tempo,
é a necessidade do movimento,
o oxigênio que dá corda ao relógio cósmico.
Não interessa tanto saber o que são as coisas,
mas do que elas são capazes.
Audazes, cruéis
são as forças invisíveis dos passos.
Os serenos estertores,
pegadas dos instintos,
seguiram,
como as nuvens ao vento,
ovelhas aos pastores.
Os balidos,
às vezes poluição às vezes oboé,
carregados foram – e sempre serão - pela incessante calmaria:
assovio utópico de uma devastadora destruição.
A pedra fica, o filhote pia, o corpo morre, o mundo continua.
Vãos e belos os registros, vãs e belas as omissões.
A roda gira, o jovem grita, o ente nasce, o mundo continua.
Tudo é movimento, devir, transformação
– nas veredas, as delícias e as dores.
A vida,
perdida por essência na prisão da energia mutante que, gravitação, faz...
Acontece, tece, cresce, é.
Sempre será.

3.
O que vocês querem... medalhas?
Insígnias, estátuas, bastões?
Ora, não sejam patéticos...
vossos passos jamais serão pegadas,
contentem-se com o anonimato,
Todos vocês são substituíveis.
Em breve todos serão transmutados
transformados em esterco para os gados.
Vocês, mortais, não passam de bichinhos de vaidade
Tem o fôlego na ponta do nariz
Patéticos!
Resfolegam feito ratos nas cavernas de suas solidões
Queimam os dentes
Tiritando os queixos de medo
no frio congelante do abandono dos seus.
No encontro com a Morte,
com as mãos trêmulas,
tampam os olhos.
Covardes!
Nunca provarão o suave perfume do jardim das delícias. A essência os sufoca.
Restou-os apenas o mal hálito de Deus insuflado em vossas narinas.
Catarro no cérebro, gases no coração, lhes restou apenas o cancro.
Como é tolo o ser humano!
Como é tolo existir!
Como é tolo!
Como é tolo amar, sofrer
pecar, se culpar
Falar.
Como é tolo falar!
(silêncio imenso)
Vocês não merecem... não merecem...

4.
Não rebaixem o valor destas palavras
ao nível da mera inspiração poética
A Jurisprudência desses verbos
é vigorada sob o templo das manifestações.
Quem vos fala é o intérprete.
A luz, não a componho
apenas modelo-a com minhas sombras.
Dirijo-me ao ninguém, e ao lugar nenhum
Não preciso atingir o simples, parto dele
Minha língua é estrangeira, o meu sotaque universal
Com os olhos nada vejo,
com os ouvidos nada ouço,
com a boca falo.
Escutai, e verão
Palavra de Denotan:
o delírio é o engodo da clareza.
Graças há Deus.  

5.
O teatro não me interessa, mas a profecia
Não sou mortal para interpretar, sou a expressão
um ser não,
um não-ser sim: ser um não-ser!
- e a questão que vá pro inferno!
Ajo, sou o proferir,
da minha boca saem sons
nos vossos ouvidos aportam sonhos
ideias, palavras, signos, mitos, portas de percepções.
No espaço entre nós o oásis da sabedoria
será Miragem? Fantasia?
Verdade? Mentira?
Entre! Nos descubramos para descobrir!
Com um peteleco giremos a moeda de duas faces:
Ilusão e Clareza.
No rodopio não duas, mas três possibilidades:
Entre uma e outra, talvez o Entre.
Talvez ereta ela suporte nos ombros a responsabilidade da Queda:
e não tombe!
Eu que vos falo, 
tão longe de tão perto,
apenas não me calo,
apenas balbucio,
transmito,
trans-mito,
trans-minto,
transito,
tran-sinto,
transe
transe
transe em estado de mito!
 
6.
Não há novidade debaixo do sol
Não há liberdade debaixo da lua
Ao pôr-do-sol, uma perifeeria
No horizonte um raio verde no átimo
Entre o claro e o escuro
A eternidade.

7.
É mentira, por isso verdadeira, a peça que prego:
Aquilo que está dentro é como aquilo que está fora
Espelho de ilusões, teatro de clarezas
E assim como tudo vem da criação
Tudo, isto ou aquilo, não passa disso: Ato.
Seu pai é o mito, sua mãe o instinto; o corpo o carrega, o sonho o nutre.
Seu poder é intacto, pois invisível – ex-matéria, agora uno.
Separemos o sutil do denso, para juntá-los na imensidão do ser.
É necessário antes do bastão do mago, ou do cajado do eremita, a foice da morte...
Assim será criado o novo mundo.
O que eu falei sobre o trabalho do sol está completo.
Que a lua ilumine o vosso caminho.

8.
No rastro de luz
escuto o murmúrio,
ele se revela num paradoxo,
suave como a sombra:
Tudo é sagrado porque nada é sagrado
o Vazio é inundado de Potência
e a Imaginação
direcionada às Coisas
elevam-nas à presentes.
Pressentes?
FÁBULAS

Na trilha do exílio, o peregrino caminhou como um trem, devagar e sempre. Em seu alforje trazia apenas retidão, em sua boca apenas o silêncio, e em seus olhos apenas um horizonte. Na mão trazia um cajado, por instinto; estava nu. Sua barba denotava uma miríade de cicatrizes em forma de tons, seu hálito exalava jejum, sua respiração era todo o seu ser (em carne). Não existindo mais veredas a perscrutar, deparou-se com o árido absoluto.
Deserto, assim havia profetizado; e cumpria.
Era pôr-do-sol. Todo o chão, que se espraiava infinitamente, estava em chamas, reluzente como o incêndio (que move do centro da Terra todos os oceanos), poderoso como as ondas que desbastam as mais rígidas pedras, misterioso como o vento que transporta, silenciosamente, todos esses grãos. A abóbada, coroada pelo Sol, fazia brilhar, aguardando do ser humano, o desembrulhar, no presente, da dádiva.
Anoiteceu porém.
E o homem, quebrando o seu cajado em diversas partes, obteve lenha; e dos calos dos pés em atrito, obteve a faísca. Não sentia frio havia muito tempo, e ademais, o que ia suceder, não se tratava de um ritual relacionado aos sentidos do corpo.
Levantou fogo; insuflou na brasa a chama, exortando labaredas no sopro de sua humildade. Altaneiro, o fogo levantou-se no céu, e por isso uma enorme sombra humana deitou-se na terra. O único ruído existente evocava, em tom de prelúdio, a imagem de uma premonição: milhares de libélulas voavam cegamente em direção ao fogo, e não obstante era do fogo que pareciam nascer; esse ruído, após certo tempo, foi lapidando à percepção a forma de uma melodia. Uma melodia de evocação, que suspendia a sombra do homem nesse estado de espera quando tudo se derrama, sem verter uma gota.
Num dos contratempos dessa dança dos intervalos, do lado mais escuro da sombra, um bote certeiro foi aplicado; e foi desviado. Sem esperar o próximo compasso, o homem, escravo da velocidade de sua percepção, é que se deu conta enfim de que aquilo era uma serpente, e no mesmo instante – unindo assim, num só gesto, pensamento e ato – tomou em sua mão um archote para afugentar/iluminar a fera. A luz dos olhos ofuscaram-se sem se fechar entre os dois seres. Incrivelmente alva era a serpente, como se simbolizasse em sua pele a própria essência do branco. A luz afugentou-a, junto com a sombra.
E a partir daí, mesmo atento e em pé, ofegante e apavorado, o homem se pôs a admirar, com espanto, o que acabara de o correr. Pensou em quão impossível era ter se esquivado de dois ataques, certamente fatais, se nem ao menos teve o poder de decidir tal fuga. “-Então eu, homem, provei enfim da salvação sem escolher a prova? O que há de ser isso que me salvou? O que há de ser isso antes do Eu, que enfrentou a morte, e venceu? E, o mais importante, de que vale toda essa caminhada de infinitas milhas se Eu não posso dar o derradeiro passo?”. E apagou o archote, e a fogueira, e deitou como outrora a sombra.
Na escuridão rastejante veio a Morte.
No outro dia levantou-se, o sol e o homem. E na fogueira extinta, sobre a areia, sob as cinzas, havia um espelho. Forjado

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- Há alguém aí – ou apenas máscaras? Há alguém aí?
O jovem eremita perguntava aos ciganos, que surgiram de um oásis, trazendo danças e encantamentos.
Enredado pelo movimento movediço, ele sentia, grão a grão, esvair a sua consciência na ampulheta da miragem. Estava perdido no centro de um furacão, aconchegado no silencioso espaço. Aturdido pelos urros, encantado pelos cânticos. Turvos os olhos pela beleza do movimento dançante, palpitante o coração - que sem saber responder vinha à boca perguntar:
- Há alguém aí? Há alguém aí? Há alguém aí?
...
Num tempo misterioso o baile do mundo cessou, a tempestade de máscaras aplainou-se no coração do solitário, e tudo voltou a ser o que era.
Errante, o peregrino dominou o cajado e ergueu-se. Dominado pela visão da fuga sem fim que é o horizonte, e assaltado pelo bote da vertigem, perguntou-se ainda uma última vez, mecanicamente – perguntou para o único espelho que um cego pode enxergar:
- Há alguém aí?
E o eco lhe respondeu, perguntando.
 
CONFISSÕES

...
Deveriam se chamar pró-fetos
pois só geraram abortos
Nada mais

Se deram a luz a algo
foi a sua placenta
mal-resolvida,

A centelha
apenas no espelho
se espreita

Encararam as estrelas
quando deve-se encarar
o próprio olhar

Deus não está lá
Longe
Está aqui, profundo

Ser profeta
não é predizer acontecimentos históricos
ou aferir a data de morte de celebridades

Ser profeta é divinar
encontrar o Se
e inventar um novo vir-a-ser.

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Ilusões! Ilusões! Eu não agüentava mais, eu não suportava aquela melodia... ser embalado... eu não suportava mais estar adormecido. Eu não queria mais sonhar, mas ver! Ver! Verdade!
Eu precisava, eu precisava experimentá-la, sê-la, na fagulha, na centelha. E decidi, em vigília profunda, engendrar este veneno. A diferença de produção dessa toxina é que ela – por sua origem divina – não pode ser materializada no espaço, apenas no tempo – o único espaço onde o invisível pode existir.
Percebi que só um método era poderoso o suficiente para realizar tal trabalho: a Senda. Nela, através do Êxtase, eu colheria a Voz Inefável, a Voz que não é Voz, e que receitaria:
1º ingrediente: a desilusão.
Sim, justamente o contrário da ilusão. Desviar-se de ilusões como o poder, a beleza, a felicidade, o amor, a vaidade. O caminho da desilusão não haveria de ser triste ou alegre, de sucesso ou de fracasso, seria justamente esse desfazer-se... de tudo, de todas as dualidades! No fim só restaria uma coisa: a Senda. E isso é tudo!
Depois do primeiro passo, o derradeiro, 2º e último ingrediente: a morte.


Texto: Denotan (entidade da Trupe Perifeéricos recebida por Mateus Moura)
Ilustrações: Romario Alves