PALAVRA DE DENOTAN








POEMAS PROVERBIAIS
 
1.
Ó tu, barqueiro desgraçado,
pedaço qualquer de coisa maldita
Não penses ingenuamente que irás conduzir-me ao outro lado assim tão fácil
Mande avisar Perséfone que jamais olhei para lugar qualquer que não o alto
Que minha Lira jamais soou para alguém que não ela própria
Sou o abismo da solidão
O altar da liberdade
O vôo e o rastejo do dragão lunar
O coração que bate eterno
A montanha sagrada.
Afasta-te, sombra sob capuz,
aqui tua foice cega será
Mande avisar Belzebu
que o fluxo não cessará jamais
que a corrente desta correnteza
nunca poderá ser partida
que a poeira das estrelas não é nada mais que uma utopia dos deuses.
Sim, desista, afasta de mim o som destas asas, Azrail,
faça tu o teu retorno original
cansado nunca estarei
a vigília será meu travesseiro
de mim ninguém nunca me tirará
Eu nasci pra dentro do mundo
e o mundo em mim crescerá.
Sou o Cosmo, a Natureza e a Vida,
Sou ulterior à Morte, ulterior à própria Esperança,
Sou Denotan, o profeta da essência
minha alçada é a das revelações,
o meu mundo é o das palavras
as palavras não valem nada,
No princípio, no principio, eu vos digo
no principio, era a mentira
e o fim não será diferente
entre o vazio e o nada o jogo do tudo
no lance, jamais abolição do acaso
Na luz a ausência da treva, na treva a ausência da luz
Tudo tem o seu preço, toda beleza o seu quinhão de ridículo
E é preciso pagar pra vivenciar, ver para contemplar 
A moeda é a coragem
o prazer e a dor se confundem na travessia
Atravessar, porém, é preciso,
temer não é possível.
Deve-se amar a fuga no encontro da estrada,
perder-se na embriaguez lúcida do passo inconseqüente
no imensurável templo do sabor do vento.
Esqueçamos pois, o incômodo dos calos,
falos eretos, adentremos
Que a sina, o sino anunciam:
é hora da abolição do tempo
da criação, do nascimento.

2.
Se a Lira compõe o realejo determinista
A Sorte – em tom de Acaso Maior – rearranja a canção
- sussurrada em forma de vento por todos os lugares.
Ao Ser, virtuose natural do instrumento da Vontade,
é destinado um limite: a Liberdade de improvisar.
Mais valente que os deuses são os homens, que acreditam
A fé no mistério da fé é o maior dos mistérios
A vida não morre, ela é morte todo o tempo,
é a necessidade do movimento,
o oxigênio que dá corda ao relógio cósmico.
Não interessa tanto saber o que são as coisas,
mas do que elas são capazes.
Audazes, cruéis
são as forças invisíveis dos passos.
Os serenos estertores,
pegadas dos instintos,
seguiram,
como as nuvens ao vento,
ovelhas aos pastores.
Os balidos,
às vezes poluição às vezes oboé,
carregados foram – e sempre serão - pela incessante calmaria:
assovio utópico de uma devastadora destruição.
A pedra fica, o filhote pia, o corpo morre, o mundo continua.
Vãos e belos os registros, vãs e belas as omissões.
A roda gira, o jovem grita, o ente nasce, o mundo continua.
Tudo é movimento, devir, transformação
– nas veredas, as delícias e as dores.
A vida,
perdida por essência na prisão da energia mutante que, gravitação, faz...
Acontece, tece, cresce, é.
Sempre será.

3.
O que vocês querem... medalhas?
Insígnias, estátuas, bastões?
Ora, não sejam patéticos...
vossos passos jamais serão pegadas,
contentem-se com o anonimato,
Todos vocês são substituíveis.
Em breve todos serão transmutados
transformados em esterco para os gados.
Vocês, mortais, não passam de bichinhos de vaidade
Tem o fôlego na ponta do nariz
Patéticos!
Resfolegam feito ratos nas cavernas de suas solidões
Queimam os dentes
Tiritando os queixos de medo
no frio congelante do abandono dos seus.
No encontro com a Morte,
com as mãos trêmulas,
tampam os olhos.
Covardes!
Nunca provarão o suave perfume do jardim das delícias. A essência os sufoca.
Restou-os apenas o mal hálito de Deus insuflado em vossas narinas.
Catarro no cérebro, gases no coração, lhes restou apenas o cancro.
Como é tolo o ser humano!
Como é tolo existir!
Como é tolo!
Como é tolo amar, sofrer
pecar, se culpar
Falar.
Como é tolo falar!
(silêncio imenso)
Vocês não merecem... não merecem...

4.
Não rebaixem o valor destas palavras
ao nível da mera inspiração poética
A Jurisprudência desses verbos
é vigorada sob o templo das manifestações.
Quem vos fala é o intérprete.
A luz, não a componho
apenas modelo-a com minhas sombras.
Dirijo-me ao ninguém, e ao lugar nenhum
Não preciso atingir o simples, parto dele
Minha língua é estrangeira, o meu sotaque universal
Com os olhos nada vejo,
com os ouvidos nada ouço,
com a boca falo.
Escutai, e verão
Palavra de Denotan:
o delírio é o engodo da clareza.
Graças há Deus.  

5.
O teatro não me interessa, mas a profecia
Não sou mortal para interpretar, sou a expressão
um ser não,
um não-ser sim: ser um não-ser!
- e a questão que vá pro inferno!
Ajo, sou o proferir,
da minha boca saem sons
nos vossos ouvidos aportam sonhos
ideias, palavras, signos, mitos, portas de percepções.
No espaço entre nós o oásis da sabedoria
será Miragem? Fantasia?
Verdade? Mentira?
Entre! Nos descubramos para descobrir!
Com um peteleco giremos a moeda de duas faces:
Ilusão e Clareza.
No rodopio não duas, mas três possibilidades:
Entre uma e outra, talvez o Entre.
Talvez ereta ela suporte nos ombros a responsabilidade da Queda:
e não tombe!
Eu que vos falo, 
tão longe de tão perto,
apenas não me calo,
apenas balbucio,
transmito,
trans-mito,
trans-minto,
transito,
tran-sinto,
transe
transe
transe em estado de mito!
 
6.
Não há novidade debaixo do sol
Não há liberdade debaixo da lua
Ao pôr-do-sol, uma perifeeria
No horizonte um raio verde no átimo
Entre o claro e o escuro
A eternidade.

7.
É mentira, por isso verdadeira, a peça que prego:
Aquilo que está dentro é como aquilo que está fora
Espelho de ilusões, teatro de clarezas
E assim como tudo vem da criação
Tudo, isto ou aquilo, não passa disso: Ato.
Seu pai é o mito, sua mãe o instinto; o corpo o carrega, o sonho o nutre.
Seu poder é intacto, pois invisível – ex-matéria, agora uno.
Separemos o sutil do denso, para juntá-los na imensidão do ser.
É necessário antes do bastão do mago, ou do cajado do eremita, a foice da morte...
Assim será criado o novo mundo.
O que eu falei sobre o trabalho do sol está completo.
Que a lua ilumine o vosso caminho.

8.
No rastro de luz
escuto o murmúrio,
ele se revela num paradoxo,
suave como a sombra:
Tudo é sagrado porque nada é sagrado
o Vazio é inundado de Potência
e a Imaginação
direcionada às Coisas
elevam-nas à presentes.
Pressentes?
FÁBULAS

Na trilha do exílio, o peregrino caminhou como um trem, devagar e sempre. Em seu alforje trazia apenas retidão, em sua boca apenas o silêncio, e em seus olhos apenas um horizonte. Na mão trazia um cajado, por instinto; estava nu. Sua barba denotava uma miríade de cicatrizes em forma de tons, seu hálito exalava jejum, sua respiração era todo o seu ser (em carne). Não existindo mais veredas a perscrutar, deparou-se com o árido absoluto.
Deserto, assim havia profetizado; e cumpria.
Era pôr-do-sol. Todo o chão, que se espraiava infinitamente, estava em chamas, reluzente como o incêndio (que move do centro da Terra todos os oceanos), poderoso como as ondas que desbastam as mais rígidas pedras, misterioso como o vento que transporta, silenciosamente, todos esses grãos. A abóbada, coroada pelo Sol, fazia brilhar, aguardando do ser humano, o desembrulhar, no presente, da dádiva.
Anoiteceu porém.
E o homem, quebrando o seu cajado em diversas partes, obteve lenha; e dos calos dos pés em atrito, obteve a faísca. Não sentia frio havia muito tempo, e ademais, o que ia suceder, não se tratava de um ritual relacionado aos sentidos do corpo.
Levantou fogo; insuflou na brasa a chama, exortando labaredas no sopro de sua humildade. Altaneiro, o fogo levantou-se no céu, e por isso uma enorme sombra humana deitou-se na terra. O único ruído existente evocava, em tom de prelúdio, a imagem de uma premonição: milhares de libélulas voavam cegamente em direção ao fogo, e não obstante era do fogo que pareciam nascer; esse ruído, após certo tempo, foi lapidando à percepção a forma de uma melodia. Uma melodia de evocação, que suspendia a sombra do homem nesse estado de espera quando tudo se derrama, sem verter uma gota.
Num dos contratempos dessa dança dos intervalos, do lado mais escuro da sombra, um bote certeiro foi aplicado; e foi desviado. Sem esperar o próximo compasso, o homem, escravo da velocidade de sua percepção, é que se deu conta enfim de que aquilo era uma serpente, e no mesmo instante – unindo assim, num só gesto, pensamento e ato – tomou em sua mão um archote para afugentar/iluminar a fera. A luz dos olhos ofuscaram-se sem se fechar entre os dois seres. Incrivelmente alva era a serpente, como se simbolizasse em sua pele a própria essência do branco. A luz afugentou-a, junto com a sombra.
E a partir daí, mesmo atento e em pé, ofegante e apavorado, o homem se pôs a admirar, com espanto, o que acabara de o correr. Pensou em quão impossível era ter se esquivado de dois ataques, certamente fatais, se nem ao menos teve o poder de decidir tal fuga. “-Então eu, homem, provei enfim da salvação sem escolher a prova? O que há de ser isso que me salvou? O que há de ser isso antes do Eu, que enfrentou a morte, e venceu? E, o mais importante, de que vale toda essa caminhada de infinitas milhas se Eu não posso dar o derradeiro passo?”. E apagou o archote, e a fogueira, e deitou como outrora a sombra.
Na escuridão rastejante veio a Morte.
No outro dia levantou-se, o sol e o homem. E na fogueira extinta, sobre a areia, sob as cinzas, havia um espelho. Forjado

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- Há alguém aí – ou apenas máscaras? Há alguém aí?
O jovem eremita perguntava aos ciganos, que surgiram de um oásis, trazendo danças e encantamentos.
Enredado pelo movimento movediço, ele sentia, grão a grão, esvair a sua consciência na ampulheta da miragem. Estava perdido no centro de um furacão, aconchegado no silencioso espaço. Aturdido pelos urros, encantado pelos cânticos. Turvos os olhos pela beleza do movimento dançante, palpitante o coração - que sem saber responder vinha à boca perguntar:
- Há alguém aí? Há alguém aí? Há alguém aí?
...
Num tempo misterioso o baile do mundo cessou, a tempestade de máscaras aplainou-se no coração do solitário, e tudo voltou a ser o que era.
Errante, o peregrino dominou o cajado e ergueu-se. Dominado pela visão da fuga sem fim que é o horizonte, e assaltado pelo bote da vertigem, perguntou-se ainda uma última vez, mecanicamente – perguntou para o único espelho que um cego pode enxergar:
- Há alguém aí?
E o eco lhe respondeu, perguntando.
 
CONFISSÕES

...
Deveriam se chamar pró-fetos
pois só geraram abortos
Nada mais

Se deram a luz a algo
foi a sua placenta
mal-resolvida,

A centelha
apenas no espelho
se espreita

Encararam as estrelas
quando deve-se encarar
o próprio olhar

Deus não está lá
Longe
Está aqui, profundo

Ser profeta
não é predizer acontecimentos históricos
ou aferir a data de morte de celebridades

Ser profeta é divinar
encontrar o Se
e inventar um novo vir-a-ser.

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Ilusões! Ilusões! Eu não agüentava mais, eu não suportava aquela melodia... ser embalado... eu não suportava mais estar adormecido. Eu não queria mais sonhar, mas ver! Ver! Verdade!
Eu precisava, eu precisava experimentá-la, sê-la, na fagulha, na centelha. E decidi, em vigília profunda, engendrar este veneno. A diferença de produção dessa toxina é que ela – por sua origem divina – não pode ser materializada no espaço, apenas no tempo – o único espaço onde o invisível pode existir.
Percebi que só um método era poderoso o suficiente para realizar tal trabalho: a Senda. Nela, através do Êxtase, eu colheria a Voz Inefável, a Voz que não é Voz, e que receitaria:
1º ingrediente: a desilusão.
Sim, justamente o contrário da ilusão. Desviar-se de ilusões como o poder, a beleza, a felicidade, o amor, a vaidade. O caminho da desilusão não haveria de ser triste ou alegre, de sucesso ou de fracasso, seria justamente esse desfazer-se... de tudo, de todas as dualidades! No fim só restaria uma coisa: a Senda. E isso é tudo!
Depois do primeiro passo, o derradeiro, 2º e último ingrediente: a morte.


Texto: Denotan (entidade da Trupe Perifeéricos recebida por Mateus Moura)
Ilustrações: Romario Alves